No ano de 212 a.C., após um cerco de dois anos à cidade de Siracusa, na Magna Grécia, atual Sicília, esta foi capturada pelas legiões romanas. Quando a casa de Arquimedes – que com seus engenhos ópticos e mecânicos retardou ao máximo a queda da cidade – foi invadida pelos romanos, ele estava no quintal desenhando na areia suas figuras e estudos geométricos, quando um dos soldados pisou sobre os mesmos. Noli tangere circulos meos (não toque em meus desenhos), exclamou Arquimedes em seu precário latim, sendo imediatamente morto por uma lança, que destruiu fisicamente este velho filósofo e matemático. Mas não conseguiu eliminar o seu acervo intelectual, que, atravessando os séculos, chegou até nós.







Neste blog republicaremos também artigos da minha coluna semanal BRASILIANA, do jornal MONTBLÄAT editado por FRITZ UTZERI.




quinta-feira, 19 de abril de 2012

Ínfima Lhaneza, Suprema Mesquinhez

         Negro como a noite é negra, sem a brancura da podridão.  Hoje Joaquim Barbosa luta contra a corrupção em um Supremo apequenado pela devassidão.  Antes, Cruz e Sousa, promotor em Laguna, afastado pela incompreensão.  Negro, mesmo “escovado”, deve estar fora da legislação.  Assim determina o mensalão. 

Ontem mataram um promotor que renasceu poeta.  Hoje atacam o acusador, em brocardo desamor, declarando seu pendor:

Sententia facit de albo nigrum, de quadrato rotundum (*).

         E os soluços graves, dos violões suaves, relembram o passado, magoado em ais de dor.

         Contorções de açoites fundiram, em Barbosa, a poesia de Verlaine à cruz de Sousa, nestas trêmulas, extremas, agressões supremas. 

Se, por pequenos passos, caminhamos pela vida e para a morte, aqui lutamos para a liberdade e aurora transparente de um novo dia. 

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Notas e Observações

         Prosa poética com fragmentos intertextuais da Poesia da Negritude e dos poemas Chanson d’Automne de Verlaine e Violões que Choram de Cruz e Sousa. 

         Os Poetas da Negritude procuravam novos significantes para o significado de palavras como “negro”, associada à podridão e também outros que humilhavam a cor de sua pele.  Aqui, por exemplo, uso “brancura” como “podridão”, associada à cor de tecidos em decomposição por fungos (ver Anthologie de la Nouvelle Poésie Nègre et Malgache, Léopold Sedar Senghor – Presses Universitaires, 1948 ou Reflexões Sobre o Racismo, Jean-Paul Sartre – Divisão Européia do Livro, 1963).

         João da Cruz e Sousa (1861-1898), filho de escravos alforriados, nasceu em Nossa Senhora do Desterro, atual Florianópolis.  Em 1884, nomeado promotor em Laguna, foi impedido de tomar posse e sua nomeação impugnada pelos chefes políticos locais em razão de sua cor negra (ver Apresentação da Poesia Brasileira, Manuel Bandeira).

(*) A sentença faz do branco preto e do quadrado redondo.

A morte de Ivan que não era Ilitch


        Tão pouco era Ivan.  Era o Meritíssimo Desembargador Francisco Borba, criado nestas páginas, inspirado no seu colega Desembargador Ivan Ilitch; saído da Rússia imperial e imortalizado por Leon Tolstoi.  



         Como nos antigos jornais, tomemos uma daquelas frases prontas para iniciar esta história:



         A corrupção, aliada aos mais sórdidos sentimentos humanos, é uma das chagas que o Homem há séculos tenta exterminar.



         Todos de preto.  Cochichavam pelos cantos em pequenos grupos que se formavam.  Alguns falavam um pouco mais alto para serem notados: “um belo velório!”.  A viúva dava ordens: coloque estas flores aqui; na saída do féretro não se esqueçam do Adágio de Albinoni.  A filha, Clarissa, mostrava-se tão preocupada com o futuro que não conseguia fingir tristeza.  Vez ou outra trocava olhares cúmplices com a mãe, Dona Maria José.  Alguns esqueciam onde estavam e riam divertidamente.  O filho, Abel, parecia o único a sentir real tristeza.  Assim que soube, largou os treinos para a próxima apresentação na Opera de Paris, onde estreará como primeiro bailarino.  No fim, perdoou o pai, esquecendo as humilhações sofridas quando abandonou o curso de Direito. 

         “A vaga do Borba não é para magistrado de carreira.  É para advogado de notável saber jurídico.”

         “Pra cima da gente, Santoro, seu irmão com aquele diploma amarelado vai confundir vade-mécum com vade retro.  Passou a vida ‘legalizando’ grilagens e agora vai ser nosso colega?”

         Data venia, mas para seu irmão vale aquela frase do Millôr: Advocacia era sua maneira legal de burlar a lei”.

         “Bem, manda quem pode, obedece quem tem juízo.  Vou falar pela última vez: se ele não arrumar um foro privilegiado vai cair nas mãos daquela raça ordinária de Procuradores que estão a fim de nos ferrar.  E sua casa em Angra?”

         “Santoro tem razão.  Seu irmão assume, entra de licença médica e fica enrolando pouco mais de um ano até cair na compulsória.”

         “E ainda resolve o espólio deixado pelo ilustre colega, arrumando um DAS pra Dona Maria José e Clarissa, como assessoras especializadas.”

         “Muito bonito.  Mas o governador quer, no primeiro lugar da lista tríplice, seu sobrinho, advogado da empresa de quentinhas.  Primeiro passo na arrancada para plantar mais um representante no Tribunal Superior na capital federal.”

         “Esperamos que ele não ‘ganhe’ a concorrência pra substituir nosso modesto lanchinho de salmão com caviar por suas quentinhas de macarrão com asa de barata.” 

         “O governador se comprometeu a escolher o primeiro nome.  Mas se falhar o acordado, vai qualquer um.”

         “Este analfabeto não entende nada de Pacto Republicano – os três poderes unidos contra inimigos comuns.  É só ameaçar vazar os nomes de seus correligionários processados em segredo de justiça, que ele vem comer na nossa mão.”

         “Sabe quem também está querendo uma vaga?  Aquele rábula, advogado do Senador Diógenes.  Eu brincando com aquela história de casa na Zona Sul e casa na Zona Norte, e o desgraçado apareceu lá no Méier pra pedir voto.  E ainda ameaçou, perguntando se preferia recebê-lo em Copacabana, com minha esposa servindo um licorzinho de jenipapo!”

         “Este povinho desgraçado critica, esta imprensa corrupta acusa e tem toda esta gentinha que nem imagina como é difícil tomar certas decisões.”



         A noite avançava.  Só os amigos mais chegados ficaram.  A viúva roncava, Clarissa era consolada na escura sala ao lado por gentil cavalheiro que a fazia esquecer as dores da vida.  Até Abel olhava impaciente para o relógio. 



         Um triste amanhecer.  Os últimos acordes de Albinoni. 

         Santoro nem chegou a escutar as rezas do Cardeal – ataque cardíaco fulminante: “Revertere ad locum tuum”.  “Partiu junto com seu amigo, o inestimável Francisco Borba”.  Assim foram as palavras de um futuro membro desta Egrégia Corte, “a ser renovada com sangue novo, graças às duas vagas da Providência Divina” – agora, a voz do governador, mãos trêmulas, fungando, suando frio, só um pensamento: “ao pó retornarei!”.


sábado, 7 de abril de 2012

O Que Deve Ser Dito*


Günter Grass

Por que me calo há tanto tempo

Sobre o que é evidente e se empregava

Em jogos de guerra em que no fim, sobreviventes,

terminamos como notas de pé de página.

É o suposto direito a um ataque preventivo

Que poderia exterminar o povo iraniano,

Subjugado e levado a um júbilo orquestrado por um fanfarrão,

Porque em sua jurisdição suspeita-se da fabricação de uma bomba atômica.

Mas, por que me proíbo de dizer o nome

desse outro país em que há anos ainda que secretamente

Dispõe-se de um crescente potencial nuclear

Fora de controle, já que é inacessível a toda inspeção?

O silêncio generalizado sobre esse fato,

Ao qual o meu próprio silêncio se submeteu,

Me soa como uma grave mentira

e uma coação que ameaça castigar quando não se respeita;

"antissemitismo" é o nome da condenação.

Agora, no entanto, porque o meu país foi

Atingido e chamado às falas uma e outra vez

Por crimes muito particulares

Incomparáveis

rotineiramente,

Mesmo que depois qualificada como reparação,

Vai entregar a Israel outro submarino cuja especialidade

É dirigir ogivas aniquiladoras

Em direção aonde não se comprovou a existência de uma única bomba,

Embora se queira apresentar como prova o medo

Digo o que deve ser dito

Por que me calei até agora?

Porque achava que minha origem,

Marcada por um estigma indelével, me proibia de atribuir esse fato, como é evidente,

Ao país chamado Israel, ao qual estou unido e quero continuar estando.

Por que só agora digo, envelhecido e com minha última tinta: Israel, potência nuclear, coloca em perigo uma paz mundial já por si mesma alquebrada?

Porque é preciso dizer o que amanhã poderia ser tarde demais,

E porque incriminados o bastante por ser alemães poderíamos ser cúmplices

De um crime que é previsível, tornando nossa parcela de culpa impossível de ser extinta com as desculpas de sempre

Admito: não continuo calado porque estou farto da hipocrisia do Ocidente; cabe esperar ainda que muitos se liberem do silêncio, exijam ao causador desse perigo visível que renuncie ao uso da força e insistam também em que os governos de ambos países

Permitam o controle permanente e sem barreiras por uma instância internacional do potencial nuclear israelense e das instalações nucleares iranianas.

Só assim poderemos ajudar a todos israelenses e palestinos e sobretudo a todos os seres humanos que nessa região tomada pela demência vivem como inimigos lado a lado, odiando-se mutuamente, e, definitivamente, ajudar-nos também.

*Tradução livre da versão em espanhol do poema-crônica-protesto, escrito originalmente em alemão e publicado pelo diário "Süddeutsche Zeitung".





Os Mercadores da Morte


Publicado no Montbläat, janeiro de 2009.





         “... nunca tantas cidades foram capturadas e devastadas... nunca tanta gente foi exilada ou massacrada, nunca tantas cidades sofreram uma mudança total de habitantes... Quem quer que deseje ter uma ideia clara tanto dos eventos ocorridos quanto daqueles que um dia voltarão a ocorrer em circunstâncias idênticas ou semelhantes..., julgará a minha História útil...”



         Assim escreveu o historiador grego Tucídides em sua História das Guerras do Peloponeso, que descreve uma verdadeira “Guerra Mundial” entre as cidades gregas lideradas por Esparta e Atenas entre os anos 431 e 403 a.C.

         Este livro é um libelo contra a tragédia da guerra, que na visão de Tucídides é modelada por duas forças contrastantes: a vontade do poder e o desejo de liberdade dos povos.

         Passado tantos anos, infelizmente, nada mudou, exceto a capacidade temporal de matar e destruir.  Há poucas décadas tínhamos Guernica, Lídice, Dresden e My Lai.  Hoje temos o Gueto de Gaza e as aldeias destruídas do Afeganistão, onde populações civis são sistematicamente assassinadas com grande eficiência tecnológica – bombas de fragmentação, armas químicas, bombas incendiárias de fósforo e toda sorte de armamentos que a indústria bélica fabrica.  Em Gaza, em particular, os mercadores da morte testam a eficiência de armamentos que são mais apropriados para áreas altamente urbanizadas e densamente povoadas, o que não é encontrado nas pobres aldeias afegãs já transformadas em pó.  Neste sentido a invasão terrestre de Gaza foi mais para coletar dados dos macabros experimentos e a suspensão dos bombardeios apenas uma medida prática para que “os engenheiros da morte” trabalhassem e observassem as agonias e sofrimentos causados por seus armamentos. 

         O surpreendente disto é a passividade da comunidade internacional diante de tanta violência.  Com exceção de Portugal, que proibiu o sobrevoo de seu território por aeronaves transportando armas para a matança em Gaza, no resto do mundo o silêncio é total.  Falar em boicotes como foi feito contra o governo racista da África do Sul ou em tribunais para julgar crimes de guerra como os ocorridos na Bósnia, nem pensar.  Em tempos de crise a ética e o senso de humanidade que se danem, mesmo que seja para vender a morte. 

         A insensibilidade do governo brasileiro parece seguir as regras do mercado – como os “civilizados europeus”.  Sem negócios, não tem dinheiro, não tem mensalão e, portanto, não tem campanha eleitoral. 

         O governo brasileiro continua não aderindo ao tratado internacional pelo banimento das chamadas bombas “cluster”, já que as nossas indústrias exportam este tipo de armamento.

Por outro lado, o país continua um paraíso para as vendas e contrabando de armas e a maior parte dos armamentos fabricados e exportados legalmente pelo Brasil, principalmente para os Estados Unidos e Paraguai, volta ilegalmente para as mãos da criminalidade. 

         A tolerância das nossas autoridades com o tráfico de armas é infinita, sempre se mantendo caladas sobre os fuzis AR-15 americanos e Uzi israelenses que abastecem o nosso mundo do crime, bem como nunca desagradando os Hermanos, que vendem livremente armamento de guerra pesado do Exército Boliviano e as metralhadoras russas AK-47 vendidas aos milhares originalmente para o Exército Venezuelano. 

         Mas o pior ainda vai acontecer, pavimentado pela instalação recente em São Paulo de uma representante oficial das pistolas austríacas Glock.  O entusiasmo com as “facilidades” oferecidas pelo governo brasileiro foi tão grande que um funcionário declarou:



         “... o maior garoto propaganda de nossas armas é o próprio Presidente Lula, pois todos os agentes de segurança do governo e os homens do serviço secreto tiveram suas pistolas Taurus trocadas por Glocks novinhas em folha”.



         O próximo passo agora na escalada da violência é a entrada no Brasil de empresas de segurança tipo Blackwater, que já usa equipamentos brasileiros.  Falta apenas acertar detalhes para assegurar que seus agentes possam matar e torturar com imunidade judiciária como no Iraque.  Mas isto não significa problemas, já que nos tribunais superiores já foi dito que tudo se arranja com facilidade.  Afinal de contas o comércio de segurança tende a crescer com a crise do capitalismo, com os ricos diminuindo em número, mas ganhando cada vez mais e os pobres ficando cada vez mais pobres e numerosos, lembrando aquela frase de Josué de Castro em sua Geografia da Fome:



         “No mundo alguns não dormem com medo dos que não comem e outros não comem por causa dos que não dormem”. 



         Para aqueles que consideraram este artigo exagerado ou fantasioso sugiro que fiquem atentos à feira que vai acontecer em abril próximo no Rio de Janeiro, LAAD 2009, Latin America Aero & Defense, quando os mercadores da morte descreverão em detalhes os horrores cometidos contra as populações civis de Gaza e do Afeganistão, já que hoje em dia as guerras não são entre exércitos e sim contra o povo indefeso, dentro da lógica do terrorismo de Estado. 

         E aqui voltamos tristemente a Tucídides, de que as guerras são modeladas por duas forças contrastantes: a vontade do poder e o desejo de liberdade dos povos.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Réquiem para Ninguém



Sexta feira, fim de tarde.  Mesmo assim bar vazio.  Deprimidos, todos seguiram do enterro direto para suas casas.  Mas Doutor Heráclito, Desembargador aposentado do Estado do Rio de Janeiro, não poderia deixar de comparecer e honrar o morto.  Afinal, seu lema era: “a vida continua”.  Depois de tanta bebida ordinária do modesto legado de Mendonça, lavava as tripas e alma com puro malte.  Não havia outro jeito.  Tinha que esvaziar o caixão e não poderia ir para o cemitério carregando as garrafas herdadas debaixo do braço. 

         “Pobre Mendonça.  Eu pelo menos deixarei para as futuras gerações aquela placa azinabrada nas paredes do Tribunal de Justiça de Niteroi.  E o falecido?  Em pouco tempo totalmente esquecido.  Nenhum parente, nenhum bem material – a não existência total.  Até a história da pedrada na testa de Maurício Lacerda, acabando com seu comício em Vassouras, será apagada. 

         “O médico já me disse que está na hora de trocar a pilha deste relógio.  Mas como perder preciosos dias de vida enfiado num hospital?”

         Todas as cadeiras viradas, baldes de água despejados no chão, assim ficou o nosso personagem até as vinte e duas horas quando o bar baixou as portas.  Antes, pediu mais uma dose de uísque para tomar com seus remédios.  Despediu-se da mesa, que mais parecia uma ilha.  Tomou o lotação, como sempre dormiu, acabando em Ipanema.  Pacientemente pegou o Estrada de Ferro-Leblon, retornando para a Rua Santa Clara em Copacabana, onde residia. 



         Enquanto Doutor Heráclito dorme, esquecendo a morte e preocupações com as pilhas de seu marca passo cardíaco, vamos contando esta história desde o começo. 



         Estamos nos anos 50 e tudo se passa em uma animado bar na Rua da Quitanda, onde se reuniam jovens promotores, juízes e advogados.  No fundo uns desenraizados que vinham do interior do Brasil ganhar a vida no Rio de Janeiro, Capital Federal.  Através de concursos públicos e muito esforço acabavam tirando os cargos tradicionalmente ocupados pelos filhos do poder. 

         Doutor Heráclito, não.  Chegou a Desembargador pelas mãos das elites fluminenses, uma das mais atrasadas do Brasil.  Herdeiro de grandes propriedades rurais, acabou perdendo tudo.  Simplesmente não se preocupava – era desprendido dos bens materiais.  “Deixa o povo com o tal de uso campião, como falam.  Na verdade, recuperam o que foi de seus antepassados.” 

Sua vida era os amigos e as “minhas queridas”, a quem presenteava com frascos de perfumes franceses e lencinhos de seda.  “Queira Deus que eu morra antes de acabar meu estoque de presentes” – sempre dizia. 

Nosso outro personagem, o Mendonça, é o que acabou de morrer.  Não temos muito que falar sobre ele: morava num cortiço no Santo Cristo, onde ocupava um quartinho alugado.  Vestia sempre o mesmo terno escuro – diziam que toda noite seus trajes eram limpos com um pano molhado e secados a ferro quente.  Pontualmente, às onze da manhã, entrava no bar, dependurava o chapéu, lia um jornal emprestado e, assim que chegavam os primeiros fregueses para o almoço, acabava ganhando sua única refeição diária.  Depois só bebidas.  Comida pra quê? 

         Mendonça e Doutor Heráclito: diferentes condições sociais, formação e origens.  Mas unidos pela idade e o prazer da bebida.  Sempre queridos pelos jovens judiciários que os acolhiam como pais ou talvez avôs. 



         As conversas no bar – verdadeiro refúgio – giravam entre temas jurídicos, política, literatura e, claro, mulheres e bebidas, temas preferidos do Doutor Heráclito, em particular seus amores por Luz del Fuego.  No fundo uma síntese das esperanças e modernidade da nossa capital federal. 

         Muitas noites terminavam com discussões entre nosso douto Desembargador e Mendonça: “Velho safado”.  “Baderneiro”.  Nada que uma noite de sono, ou um quase coma etílico, não curasse. 



         Hoje comemoravam a sentença vitoriosa daquele juiz, chamado – nos bastidores – por um grande jurista, de roceiro impertinente: “Os oito por cento que os patrões descontam dos empregados e não recolhem para o INPS são tipificados como apropriação indébita: roubo.  Logo, cadeia neles.  O Tribunal Federal de Recursos confirmou, e as notícias que chegam da Cinelândia são de que Supremo Tribunal Federal acaba de votar por unanimidade a prisão dos proprietários das barcas.” 

         “Sorte já estarem presos no Presídio da Frei Caneca.  Acontece uma insurreição popular em Niteroi.  Incendiaram a estação das barcas e agora estão pondo fogo na residência dos proprietários, lá em Icaraí.  Os familiares fugiram com a roupa do corpo!”

         “A fumaça está atravessando a baía, e as chamas iluminando o céu podem ser vistas da Praça XV!”



         Outro dia fizeram valer a ética.  Todos pagaram as contas e rumaram para o bar ao lado quando apareceu o Deputado Federal Tenório Cavalcante.  Por outro lado, adoravam o Deputado Paraibano contando suas campanhas eleitorais: “Esta facada aqui nas costas foi na eleição pra vereador.  A cicatriz na barriga, na campanha eleitoral de deputado estadual: trabalho de amadores.  Já esta nas costas, conheciam o ofício.  Quase me mataram.  Muita promessa pra eu estar aqui diante dos ilustres.  Meu primeiro projeto na Câmara Federal foi a construção de um açude, lá na fazenda, para este sofrido povo de Deus.” 

         Alguns eram considerados persona nom grata, jamais podendo atravessar a porta do bar: “Antes de ser advogado foi da Ordem Política.  Um dos torturadores da Olga Benário”.  “Quando seus processos caem na minha vara ele vai logo subestabelecendo, pois sabe que nem o Ministro da Justiça conseguirá que ele pise no meu gabinete”.

         Satisfação era quando Brito Broca aparecia por lá.  Poemas em papéis amarelados saíam dos bolsos, contos não publicados exibidos.  Sorrisos, conversas, dádivas para carreiras literárias esquecidas.  Na luta pela sobrevivência, o colorido das letras sufocado por cinzentos brocardos jurídicos. 



         Mas voltemos a nossa história inicial.  Mendonça morreu e Doutor Heráclito, o testamenteiro, tomava providências.  Trabalho não teria – o penico, o ferro de passar roupa e outras quinquilharias já deixadas em testamento para o senhorio.  Apenas algumas modestas dívidas a saldar.  O caixão já estava comprado e o enterro pago na Funerária Morte Feliz, lá de Niteroi.  Mendonça era previdente.  Pagou tudo em suaves prestações. 



         Quando o Doutor chegou no Santo Cristo, uma multidão o aguardava: crianças remelentas, mulheres buchudas, roupas remendadas, cachorros sarnentos, anotadores de bicho escondendo os talonários – respeito era bom.  As escadarias rangiam, o odor de urina de rato sufocando.  Frestas de portas se abriam, olhares curiosos, outros de espanto, mas todos de tristeza e miséria.  O Desembargador adentrava um mundo inimaginável. 

Desmontou as prateleiras do caixão, usado como depósito de garrafas, separou as vazias das duas ainda cheias.  Leu nos rótulos: Conhaque de Alcatrão de São João da Barra.  Pediu uns copos ao senhorio, encheu o seu com a bebida, e, a pretexto de uma dose para o santo, girou solenemente, despejando o conhaque no chão.  Afinal, um mínimo de assepsia era necessário.  E todos beberam.  Última homenagem a Mendonça, enquanto olhava a tampa do caixão apoiada em dois caixotes.  Outrora, usada como tábua de passar roupa.  Agora servindo de mesa, coberta por uma toalha de linholene, suportando a bandeja de plástico encardido e as duas garrafas já quase vazias.