No ano de 212 a.C., após um cerco de dois anos à cidade de Siracusa, na Magna Grécia, atual Sicília, esta foi capturada pelas legiões romanas. Quando a casa de Arquimedes – que com seus engenhos ópticos e mecânicos retardou ao máximo a queda da cidade – foi invadida pelos romanos, ele estava no quintal desenhando na areia suas figuras e estudos geométricos, quando um dos soldados pisou sobre os mesmos. Noli tangere circulos meos (não toque em meus desenhos), exclamou Arquimedes em seu precário latim, sendo imediatamente morto por uma lança, que destruiu fisicamente este velho filósofo e matemático. Mas não conseguiu eliminar o seu acervo intelectual, que, atravessando os séculos, chegou até nós.







Neste blog republicaremos também artigos da minha coluna semanal BRASILIANA, do jornal MONTBLÄAT editado por FRITZ UTZERI.




segunda-feira, 14 de maio de 2012

O Carregador de Malas




– Com aquela história de dez em pé e vinte deitado, Luzete e as meninas faturam alto.  Inda bem que tem a barranca pra se encostar. 

– Fala baixo, Deusimar, se não ela vai inventar o quinze no barranco! 

– Nunca vi muié da vida ganhar mais que garimpeiro.  Vão ficando com todo ouro, e agora com o diesel que revendem. 

– É, Francelino, mas agora a moleza acabou.  Temos nove galões de óleo escondidos aqui no mato, mais estes três que nós e Zé Erpídio vamos levando.  Amanhã as bombas vão funcionar direto.  Vamos lavar a terra.  O ouro vai brilhar!  Lili Gambá, Mariazinha do Cajá e até Carminha Mortadela vão ter que esperar. 

– Pena que Onofre e Ceará morreram e o barco afundou todo furado de bala.  Foi pura maldade.  Não tinha óleo pra tomar – tudo já bem escondido – e eles já iam embora.  Estavam até no lado brasileiro do Oiapoque. 

         – Nós tinha mesmo que esperar, Zé Erpídio, é a troca da guarda.  O pessoal da Legião Estrangeira, não só tem boa pontaria, como gosta de matar.  O Exército tem aquele negócio de advertir com alto-falante: vocês invadiram a fronteira... e a turma nem aí.  

– Pudera, quem entende língua de gringo?

– É, mas o óleo estava acabando, a mineração parando. 

         – Não é melhor descansar, Zé Erpídio?  Com este treme-treme ocê não vai longe! 

         – Já perdi a conta das malárias que tive nestes anos de mato.  Espero não ser a última.  Enquanto descanso, vou falando sobre a vida que levei.  Assim o tempo passa e vocês abrem os olhos.  Ainda são novos, podem tomar outro rumo.  Aqui, mais cedo ou tarde, o caldo vai ferver.  Agora matam só no miúdo.  É só olhar os brasileiros escorraçados como cachorros doidos, do Paraguai, Bolívia, Venezuela e agora no Suriname.  Lá na Capital só querem negócio com gringo e hermano. 

         Comecei muito novo, pelas mãos de um tio mecânico.  Consertava, ou melhor, fazia remendos nas tubulações de água que comiam as barrancas. 

De um lado o garimpo de Seu Orfeu e Coice de Mula.  Do outro seu Pavão. 

Dona Eurídice – Professora Formada – tinha uma filha com Seu Orfeu, a Orfídia.  Uma teteia de garota.  Assim que aprendi a ler e escrever, rabisquei na folha de caderno uma quadrinha lá da minha terra e ofereci pra garota.  Deu uma grande confusão.  Quase me mandaram andar. 

         Dona Eurídice morreu de maleita.  Logo depois enterravam Seu Orfeu.  Dizem que foi tristeza. 

         Coice de Mula aproveitou e ficou com todo o lado do rio. 

         Quando avisaram que Coice de Mula estava leiloando Orfídia, não sei se foi o Divino ou o Demo quem guiou o enxadão que partiu a cabeça do desgraçado.  No dia seguinte, seu Pavão mandou o Galindo – uma espécie de curandeiro – descer de voadeira, uns dois dias rio abaixo, até encontrar um padre missionário que vivia com uns índios.  Foi acertado o casamento, pelo rumo (1), de eu e Orfídia. 

Não é que a menina era muito esperta e tinha um monte de pepita de ouro dentro da caixinha de lápis de sua mãe? 

         Dos filhos, só vingou Orfeuzinho.  Os outros... tudo anjinho...



         Zé Erpídio tremia muito, sentindo tanto frio deitado naquele mato úmido, que nem percebeu quando Deusimar e Francelino esconderam seu galão de diesel, cuspiram nos seus dedos, limpando a lama pra tirar as alianças de viúvo: esta é sua última noite, com sorte o último amanhecer.  Se não aparecer parente cada um fica com uma aliança. 

Sumiram na noite da mata escura...



         Carregador de malas?  Sim.  Vou contar tudinho.  Zé Erpídio não sabia se falava ou apenas pensava.  Mas naquele contar e recontar de sua vida, isto não tinha precisão de saber:

         ...Trabalhei muito.  Estudei foi muito.  Tirei o Madureza e Contabilidade.  Morava em apartamento.  Orfeuzinho estudava no colégio dos padres.  Colégio particular. 

         Todo mês ia ao Rio de Janeiro.  Lá na empresa de engenharia nem esquentava cadeira.  O próprio diretor me entregava a mala.  Um carro esperava na garagem.  Só sossegava quando apeava do avião e o Senador em pessoa punha a mão na alça da encomenda.  Ficava esperando sentado numa saleta nos fundos de sua casa: “escritório pras visitas importantes”, como dizia.

         Tudo desandou quando o homem ficou cheio de importâncias.  Figura nacional, diziam todos: “Some de vez, Zé Erpídio!  Você sabe demais”.  Esfriei a cabeça, larguei umas ideias que atormentavam e caí nestes fins de mundo.  Pra aquietar o coração, repetia sem parar: “Orfeuzinho é Advogado Formado.  Doutor Orfeu Mendes!”



         Pra quem nunca madrugou no mato o ruído é assustador.  Parece o mundo vindo abaixo com os rugidos dos bugios anunciando o amanhecer.  Poderíamos imaginar milhares, milhões.  Mas não passa de uma dúzia, o máximo em cada família.  Cessando o ronco da macacada, cada pássaro faz a saudação matinal.  Gosto de escutar.  Nunca me acostumei.  Sempre a mesma belezura.

         Este piado é diferente!  É o aviso do Cricrió seringueiro (2).  Quem sabe não me levam pro hospital na cidade?  Bobagem, Legionário e nós garimpeiro é tudo igual.  Morremos em solo estrangeiro, longe da família.

Nossa sina é morte e destruição. 



         E assim ficou o velho garimpeiro, morrendo pouco a pouco, minuto a minuto, com os raios de sol tentando penetrar na barreira verde de Castanheiras, Imbaúbas e Cumarus.  As Pixaúbas e Barrigudas pareciam refrescar ainda mais a sombra, emoldurada por um pau de Angelim e gigantesca Figueira furando o teto da mata.  A majestade da vegetação não lamentava aquela morte iminente.  Poderia aplaudir.  Preferia ser neutra. 

Tinha instantes em que a floresta silenciava, como se para respirar.  Nestas horas, escutava-se o roer dos dentes das cotias quebrando ouriços (3) e o morno som vindo dos assanhaços (4). 

         Agora o piado está perto demais.  Rostos se aproximam: Meu nome é Zé Erpídio.  Estampidos de tiros... Vive la France... Risos. 



         – Não se preocupe, Senador!  Quando falo aqui de São Paulo a voz é criptografada.  O seu telefone faz o processo inverso.  Não adianta gravar a conversa.  O araponga não vai entender nada.  O que é?  São estes negócios de informática.  É tecnologia a serviço do progresso.  Chega desta gentinha que não gosta de dinheiro... Cheguei agora mesmo de Brasília.  Gostou da defesa?  É Direito puro, Teoria Jurídica pra cacete!  Na verdade enviei um “carregador de malas”.  Um não, foram vários.  Disto o Senhor entende bem.  Denúncia anônima tem que anular o processo e devolver todo o metro cúbico de dinheiro pra debaixo da cama da sua “protegida”.  Lei é lei.  Se fosse um defunto?  Esta é boa, Senador... Mas decisão jurídica não se discute.  Cumpre-se!  O defunto ia ficar fedendo debaixo da sua cama.  Desculpe.  Da cama da sua “protegida...”, Senador. 

– Doutor Orféééééo... o funcionário do Itamaraty disse que não vai esperar mais e que está se lixando se o caso acabar na Imprensa. 



– A fronteira é na metade do rio.  O corpo estava na floresta, do outro lado.  Várias perfurações.  Uma rajada de fuzil-metralhadora.  A embaixada quer saber se envia o morto.  Enviaram também esta folha de caderno com um “bilhete”.

– Meu caro, obrigado pela atenção.  Não conheço este tipo de gente.  Trata-se de um homônimo.  Quanto a este papel, pode deixar que rasgo e jogo na lixeira.  Esta história de quadrinha com o nome de minha mãe é uma infâmia da Direita que quer prejudicar o Governo.

         Antes de sumir com o “bilhete” imundo, a secretária não resistiu a uma olhadela:

Querida Orfídia



Quem me dera fosses árvore

E eu pudesse ser cipó

Pra viver enroladinho

No teu corpo dando nó.

Zé Erpídio

Notas:

1. Com as dificuldades de deslocamento do padre ou dos noivos, no “casamento pelo rumo” é acertada uma hora e o sacerdote realiza a cerimônia voltado para o rumo onde estão os noivos, familiares e amigos. 

2. Também conhecido como Peito de aço ou Biscateiro.  Este pássaro, com um forte piado, avisa quando o perigo penetra na floresta – ser humano ou uma onça, por exemplo. 

3. Também conhecido como cabaça.  Fruto da castanheira, castanha.

4. Formigueiros construídos nos galhos de árvores, que produzem um grande ruído em resposta às vibrações externas, com as formigas-soldado entrando em posição de combate. 



Conto publicado em “Cidades de Memórias”


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