No ano de 212 a.C., após um cerco de dois anos à cidade de Siracusa, na Magna Grécia, atual Sicília, esta foi capturada pelas legiões romanas. Quando a casa de Arquimedes – que com seus engenhos ópticos e mecânicos retardou ao máximo a queda da cidade – foi invadida pelos romanos, ele estava no quintal desenhando na areia suas figuras e estudos geométricos, quando um dos soldados pisou sobre os mesmos. Noli tangere circulos meos (não toque em meus desenhos), exclamou Arquimedes em seu precário latim, sendo imediatamente morto por uma lança, que destruiu fisicamente este velho filósofo e matemático. Mas não conseguiu eliminar o seu acervo intelectual, que, atravessando os séculos, chegou até nós.







Neste blog republicaremos também artigos da minha coluna semanal BRASILIANA, do jornal MONTBLÄAT editado por FRITZ UTZERI.




quinta-feira, 24 de maio de 2012

Devaneios no Tempo


         O jeito foi sair andando por aí.  Perdido no tempo. 

Como suportar tanta infâmia?  Como suportar aquela patética figura, lágrimas de crocodilo, citar Galileu Galilei – Cientista tão perseguido pela Medieval Inquisição – e nomear para uma suposta Comissão da Verdade, deplorável antigo Procurador Geral da República que tentou proibir, em nome do fundamentalismo religioso, a pesquisa científica em células-tronco? 

Para agravar, ao lado, entre palavras como Justiça e Democracia, aplauso das latrinas do poder vindas daquele eterno Senador que há mais de meio século vive da Mentira. 



         Alguma coisa aconteceu.  Esqueço o presente, lembro o passado.  Parado na Senador Vergueiro, esquina com Paissandu, posso até ler:



Festival Paissandu (um filme por dia) – Ar Condicionado Perfeito


Hoje, 10 de janeiro de 1966, 3ª feira:“O Demônio das 11 horas”


(Pierrot Le Fou)



No cartaz ao lado:

Cia. Cinematográfica Franco Brasileira


Apresenta:


“Cléo de 5 às 7”


            “Voilá enfin le film qui me donne envie de continuer à faire du cinéma”



          Brigitte Bardot



         Na banca próxima compro o último Cahiers Du Cinéma e continuo meu exílio percorrendo atalhos das lembranças.  Algumas nem sempre agradáveis, mas acunhadas nas camadas de memória que não se apagam.

         Na esquina da Avenida Rio Branco com Sete de Setembro, fico observando o enorme cartaz na lateral do prédio número 97 desta última rua – sede da Editora Civilização Brasileira –, mostrando uma pessoa amordaçada, com olhos vendados e ouvidos cobertos pelas mãos.  Em letras garrafais, escrito:



Quem não lê, mal fala, mal ouve, mal vê.



Uma frase para nossos dias!



         Entro em um velho sebo.  Abro o livro Crônicas Inéditas de Manuel Bandeira.  Na primeira página a fotografia do bonde:
Pça 15 Novembro –E. de Ferro-10 de Março.

         No canto escuro, uma moça muito branca, cabelos negros, escorrendo a confundir-se com o vestido preto.  Do lado esquerdo pendia um violoncelo.  Com a mão direita folheava grosso volume.  A cada página, o movimento dos cabelos desnudando os ombros alvos. 

Entre as estantes, um velho ia se arrastando, olhos colados nas lombadas.  Ao me ver sorriu e comentou:  “Vou anotando os nomes dos livros que gosto.  Em casa passo tudo a limpo no caderno – minha biblioteca.  Um dia, quando tiver dinheiro, vou comprar tudo.” 



         Caminho pela Avenida Rio Branco. 

O inesperado: súbita rajada de vento arranca as vidraças de um prédio.  Correrias.  Para onde ir?  Uma grande borboleta amarela passou roçando em meus cabelos.  Quem sabe não seria a borboleta perdida de Rubem Braga?  Chance única de escapar.  Sigo o lepidóptero.  Acabo deslizando pelas rampas sinuosas do Marquês de Herval, refugiando-me na Leonardo da Vinci.  Lá sou recebido com amistoso cumprimento da livreira, não a filha, mas a mãe.  Provavelmente lembranças de algum antigo frequentador, há muito desaparecido – são meus cabelos brancos e a bengala que me acompanha. 



         Retorno.  Entro em casa.  Ressuscito um velho LP com a primeira gravação mundial da Sinfonia de Luciano Berio, pela Filarmônica de Nova York acompanhada do The Swingle Singers e regida pelo próprio compositor.  Reativo uma velha vitrola Garrard Zero 100, para finalmente, retrocedendo mais de quarenta anos, desfrutar de boa música, pensando como seria bom para a Humanidade se pudéssemos também ressuscitar os ideais de Democracia e Liberdade, substituídos nos dias de hoje pelo culto da Mentira e Passividade. 



Nota:

A Sinfonia de Luciano Berio foi composta em 1968, com estreia mundial pela Filarmônica de Nova York em 10 de outubro do mesmo ano.  Saudada pelo TIME como: “Uma excitante experiência musical que focaliza os males da época melhor do que todos os movimentos de protesto de vanguarda, de misticismo e de violência que afetam a vida contemporânea.  É uma grande e estimulante composição musical”. 

Nesta Sinfonia temos trechos de Le Cru et le Cuit de Claude Levi-Strauss, extratos de The Unnamable (O Indescritível) de Samuel Beckett e um tributo a Martin Luther King, com sofisticada e ímpar integração entre música e vozes. 

segunda-feira, 14 de maio de 2012

O Carregador de Malas




– Com aquela história de dez em pé e vinte deitado, Luzete e as meninas faturam alto.  Inda bem que tem a barranca pra se encostar. 

– Fala baixo, Deusimar, se não ela vai inventar o quinze no barranco! 

– Nunca vi muié da vida ganhar mais que garimpeiro.  Vão ficando com todo ouro, e agora com o diesel que revendem. 

– É, Francelino, mas agora a moleza acabou.  Temos nove galões de óleo escondidos aqui no mato, mais estes três que nós e Zé Erpídio vamos levando.  Amanhã as bombas vão funcionar direto.  Vamos lavar a terra.  O ouro vai brilhar!  Lili Gambá, Mariazinha do Cajá e até Carminha Mortadela vão ter que esperar. 

– Pena que Onofre e Ceará morreram e o barco afundou todo furado de bala.  Foi pura maldade.  Não tinha óleo pra tomar – tudo já bem escondido – e eles já iam embora.  Estavam até no lado brasileiro do Oiapoque. 

         – Nós tinha mesmo que esperar, Zé Erpídio, é a troca da guarda.  O pessoal da Legião Estrangeira, não só tem boa pontaria, como gosta de matar.  O Exército tem aquele negócio de advertir com alto-falante: vocês invadiram a fronteira... e a turma nem aí.  

– Pudera, quem entende língua de gringo?

– É, mas o óleo estava acabando, a mineração parando. 

         – Não é melhor descansar, Zé Erpídio?  Com este treme-treme ocê não vai longe! 

         – Já perdi a conta das malárias que tive nestes anos de mato.  Espero não ser a última.  Enquanto descanso, vou falando sobre a vida que levei.  Assim o tempo passa e vocês abrem os olhos.  Ainda são novos, podem tomar outro rumo.  Aqui, mais cedo ou tarde, o caldo vai ferver.  Agora matam só no miúdo.  É só olhar os brasileiros escorraçados como cachorros doidos, do Paraguai, Bolívia, Venezuela e agora no Suriname.  Lá na Capital só querem negócio com gringo e hermano. 

         Comecei muito novo, pelas mãos de um tio mecânico.  Consertava, ou melhor, fazia remendos nas tubulações de água que comiam as barrancas. 

De um lado o garimpo de Seu Orfeu e Coice de Mula.  Do outro seu Pavão. 

Dona Eurídice – Professora Formada – tinha uma filha com Seu Orfeu, a Orfídia.  Uma teteia de garota.  Assim que aprendi a ler e escrever, rabisquei na folha de caderno uma quadrinha lá da minha terra e ofereci pra garota.  Deu uma grande confusão.  Quase me mandaram andar. 

         Dona Eurídice morreu de maleita.  Logo depois enterravam Seu Orfeu.  Dizem que foi tristeza. 

         Coice de Mula aproveitou e ficou com todo o lado do rio. 

         Quando avisaram que Coice de Mula estava leiloando Orfídia, não sei se foi o Divino ou o Demo quem guiou o enxadão que partiu a cabeça do desgraçado.  No dia seguinte, seu Pavão mandou o Galindo – uma espécie de curandeiro – descer de voadeira, uns dois dias rio abaixo, até encontrar um padre missionário que vivia com uns índios.  Foi acertado o casamento, pelo rumo (1), de eu e Orfídia. 

Não é que a menina era muito esperta e tinha um monte de pepita de ouro dentro da caixinha de lápis de sua mãe? 

         Dos filhos, só vingou Orfeuzinho.  Os outros... tudo anjinho...



         Zé Erpídio tremia muito, sentindo tanto frio deitado naquele mato úmido, que nem percebeu quando Deusimar e Francelino esconderam seu galão de diesel, cuspiram nos seus dedos, limpando a lama pra tirar as alianças de viúvo: esta é sua última noite, com sorte o último amanhecer.  Se não aparecer parente cada um fica com uma aliança. 

Sumiram na noite da mata escura...



         Carregador de malas?  Sim.  Vou contar tudinho.  Zé Erpídio não sabia se falava ou apenas pensava.  Mas naquele contar e recontar de sua vida, isto não tinha precisão de saber:

         ...Trabalhei muito.  Estudei foi muito.  Tirei o Madureza e Contabilidade.  Morava em apartamento.  Orfeuzinho estudava no colégio dos padres.  Colégio particular. 

         Todo mês ia ao Rio de Janeiro.  Lá na empresa de engenharia nem esquentava cadeira.  O próprio diretor me entregava a mala.  Um carro esperava na garagem.  Só sossegava quando apeava do avião e o Senador em pessoa punha a mão na alça da encomenda.  Ficava esperando sentado numa saleta nos fundos de sua casa: “escritório pras visitas importantes”, como dizia.

         Tudo desandou quando o homem ficou cheio de importâncias.  Figura nacional, diziam todos: “Some de vez, Zé Erpídio!  Você sabe demais”.  Esfriei a cabeça, larguei umas ideias que atormentavam e caí nestes fins de mundo.  Pra aquietar o coração, repetia sem parar: “Orfeuzinho é Advogado Formado.  Doutor Orfeu Mendes!”



         Pra quem nunca madrugou no mato o ruído é assustador.  Parece o mundo vindo abaixo com os rugidos dos bugios anunciando o amanhecer.  Poderíamos imaginar milhares, milhões.  Mas não passa de uma dúzia, o máximo em cada família.  Cessando o ronco da macacada, cada pássaro faz a saudação matinal.  Gosto de escutar.  Nunca me acostumei.  Sempre a mesma belezura.

         Este piado é diferente!  É o aviso do Cricrió seringueiro (2).  Quem sabe não me levam pro hospital na cidade?  Bobagem, Legionário e nós garimpeiro é tudo igual.  Morremos em solo estrangeiro, longe da família.

Nossa sina é morte e destruição. 



         E assim ficou o velho garimpeiro, morrendo pouco a pouco, minuto a minuto, com os raios de sol tentando penetrar na barreira verde de Castanheiras, Imbaúbas e Cumarus.  As Pixaúbas e Barrigudas pareciam refrescar ainda mais a sombra, emoldurada por um pau de Angelim e gigantesca Figueira furando o teto da mata.  A majestade da vegetação não lamentava aquela morte iminente.  Poderia aplaudir.  Preferia ser neutra. 

Tinha instantes em que a floresta silenciava, como se para respirar.  Nestas horas, escutava-se o roer dos dentes das cotias quebrando ouriços (3) e o morno som vindo dos assanhaços (4). 

         Agora o piado está perto demais.  Rostos se aproximam: Meu nome é Zé Erpídio.  Estampidos de tiros... Vive la France... Risos. 



         – Não se preocupe, Senador!  Quando falo aqui de São Paulo a voz é criptografada.  O seu telefone faz o processo inverso.  Não adianta gravar a conversa.  O araponga não vai entender nada.  O que é?  São estes negócios de informática.  É tecnologia a serviço do progresso.  Chega desta gentinha que não gosta de dinheiro... Cheguei agora mesmo de Brasília.  Gostou da defesa?  É Direito puro, Teoria Jurídica pra cacete!  Na verdade enviei um “carregador de malas”.  Um não, foram vários.  Disto o Senhor entende bem.  Denúncia anônima tem que anular o processo e devolver todo o metro cúbico de dinheiro pra debaixo da cama da sua “protegida”.  Lei é lei.  Se fosse um defunto?  Esta é boa, Senador... Mas decisão jurídica não se discute.  Cumpre-se!  O defunto ia ficar fedendo debaixo da sua cama.  Desculpe.  Da cama da sua “protegida...”, Senador. 

– Doutor Orféééééo... o funcionário do Itamaraty disse que não vai esperar mais e que está se lixando se o caso acabar na Imprensa. 



– A fronteira é na metade do rio.  O corpo estava na floresta, do outro lado.  Várias perfurações.  Uma rajada de fuzil-metralhadora.  A embaixada quer saber se envia o morto.  Enviaram também esta folha de caderno com um “bilhete”.

– Meu caro, obrigado pela atenção.  Não conheço este tipo de gente.  Trata-se de um homônimo.  Quanto a este papel, pode deixar que rasgo e jogo na lixeira.  Esta história de quadrinha com o nome de minha mãe é uma infâmia da Direita que quer prejudicar o Governo.

         Antes de sumir com o “bilhete” imundo, a secretária não resistiu a uma olhadela:

Querida Orfídia



Quem me dera fosses árvore

E eu pudesse ser cipó

Pra viver enroladinho

No teu corpo dando nó.

Zé Erpídio

Notas:

1. Com as dificuldades de deslocamento do padre ou dos noivos, no “casamento pelo rumo” é acertada uma hora e o sacerdote realiza a cerimônia voltado para o rumo onde estão os noivos, familiares e amigos. 

2. Também conhecido como Peito de aço ou Biscateiro.  Este pássaro, com um forte piado, avisa quando o perigo penetra na floresta – ser humano ou uma onça, por exemplo. 

3. Também conhecido como cabaça.  Fruto da castanheira, castanha.

4. Formigueiros construídos nos galhos de árvores, que produzem um grande ruído em resposta às vibrações externas, com as formigas-soldado entrando em posição de combate. 



Conto publicado em “Cidades de Memórias”


domingo, 6 de maio de 2012

Noturno




Primeira noite neste apartamento.  Não conseguia afundar no sono.  Ainda bem que amanhã é domingo.  Com a leitura, cada vez mais desperta.  Pudera: não era hora para As Cidades e as Serras de Eça de Queirós.

Onze badaladas do pêndulo.  Nada melhor do que um relógio antigo para quem cultive a graça das demoras.  Um relógio que marque mais os outroras que os agoras. 

Os ponteiros, tal asas de morcego num abre e fecha, a cada cleque cleque movem a noite.  Nascem e dormem constelações.  Pena, invisíveis neste céu noturno encoberto pelo concreto. 

Meia noite: ao quarto me recolho.  Meu Deus!  E este morcego!

Aquietou-se apenas lendo singelas palavras:



“Ditirambo Mineiro em Prosa”



            “Desculpem-me os mineiros.  Para mim, Minas é queijo.  Queijo com doce de leite, goiabada cascão, ou doce de mamão. 

            Fresco, meia cura ou curado.  Sempre apreciado, seja lá de cabra ou leite de vaca.  Só interessa o resultado. 



            Do Serro, da Alagoa.  De Araxá ou da Canastra.  Da Serra do Salitre – frio das montanhas, cheio de manhas.  Fino sabor rural, poesia de campos, serras, causos.



Patrimônio Imaterial da Cultura Nacional!”



         Acordou sonhando.  Pisou no quintal úmido pelo orvalho.  Fria lambida de vento invadiu a camisola.  Amanhecia.  O céu azulando.  De longe algum galo cantou.  O garnisé da vizinha respondeu.

         Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outro que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos para que uma tênue teia se vá tecendo, entre todos os galos.



         Bom dia Dona Lica. 

...dia moça – todos os dias assim.  E olhe que não é uma zeugma retórica.  Come-se o “Bom” pela economia mineira. 

Em pouco tempo o badalar dos sinos chamando para a missa das seis. 

Despertou dos sonhos e sono.  Ensolarada manhã de domingo.  Vestiu o shortinho de cintura alta, arrebitando-se no espelho.  Soltou os cabelos, vermelho nos lábios – desejável ar sexy.

Na rua, um bêbado retardatário solta palavras que por aqui soam mais como elogio do que grosseria: “Pô que lombo!”.  Cidade grande é assim. 

Compra pão e jornal.  No caminho vai lendo as notícias:



Foi preso Fulano de Tal, braço-direito do traficante conhecido como “O Matemático”.  O bandido Joãozinho Olho de Vidro foi localizado...  O Vice-Governador, alcunha de Pezão, afirmou que conhece o Sicrano de Tal, já que também é o Secretário de Obras.  



Entrou em casa, prostrou-se na poltrona.

Apenas música: Noturnos de Chopin.  





Nota:

Fragmentos intertextuais dos poemas: Relógio de Pêndulo, de Cassiano Ricardo; O Morcego, de Augusto dos Anjos e Tecendo a Manhã, de João Cabral de Melo Neto.